O fogo da paixão
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 13 de ago. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 10 de set. de 2022
O Evangelho deste domingo traz uma série de expressões enigmáticas. Num primeiro momento, as palavras de Jesus mostram-se complexas e de difícil entendimento. A primeira reação diante delas é assustar-se. Lançar fogo sobre a terra e trazer divisão, não parece ser os principais elementos de uma boa-notícia pois mostra algo que contradiz o sentido do Evangelho e do projeto de Jesus. Para não cairmos nos equívocos da racionalidade, é necessário fazer uma releitura desse Evangelho e sintonizá-lo com os sentimentos de Jesus.
Não podemos atribuir às palavras “fogo”, “batismo” e “divisão” apenas um significado espiritual e interior. O fogo é um símbolo antigo que serve como sinal de purificação e transformação. Após o dilúvio das águas, a literatura judaica acreditava que a próxima manifestação de Deus seria pelo fogo (cf. Is 66,16). O próprio João Batista anuncia o Messias com palavras fortes: “Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo” (Mt 3,11-12). Todos os autores do Novo Testamento, como também Jesus, falam de fogo. Quando ouvimos falar de fogo, é natural pensarmos no fim dos tempos e no suplício eterno de uma realidade distante de Deus. Entretanto, o “fogo de Deus” não tem a intenção de aniquilar ou torturar aqueles que cometeram erros, mas ser instrumento com o qual se destrói o mal e se purifica do pecado.
Os profetas de desventuras, anunciadores de más-notícias, fundamentalistas e pregadores fanáticos gostam da ideia de um fogo que destrói tudo. No entanto, o fogo anunciado por Jesus salva, purifica e transforma.
É o fogo da Palavra, mensagem de salvação. É o fogo do Espírito. Aquele Espírito que, no dia de Pentecostes, animou os discípulos e fez deles, anunciadores destemidos de boas-notícias. É o fogo do amor, que constrói e refaz os corações. Isso tudo, nos permite entender a exclamação de Jesus: “como gostaria que já estivesse aceso!” O desejo de Jesus é o cumprimento imediato desta profecia e o nascer de um mundo novo, fundamentado na Palavra, no Espírito e no Amor.
Jesus afirma que para lançar esse fogo, primeiro Ele deve ser batizado. Há uma relação entre o Batismo de Jesus e o fogo a ser lançado. Batizar significa “imergir” numa realidade antiga para “emergir” em uma nova realidade. A imersão de Jesus acontece na oferta do seu corpo à morte de cruz. Uma imersão preparada por aqueles que foram incapazes de compreendê-Lo e que queriam extinguir o ardor de sua libertadora Palavra. Jesus olha com angústia e ansiedade à sua morte porque a compreende como ponto de partida. Ele sabe que a imersão na paixão da cruz, fará emergir um novo mundo, nascido do seu apaixonado coração.
No caminho para Jerusalém, Jesus acende no coração de seus discípulos: o fogo da paixão. Ele deseja fazer com que seus seguidores provem a forma e o objetivo com que Ele está caminhando em direção à cruz. Ele é um homem de grande e profundo desejo. Um homem apaixonado capaz, de forma direta, confessar a paixão que O habita. O objetivo é despertar o mesmo desejo nos discípulos e tirar deles a passividade do caminho. Estas palavras ajudaram os discípulos a abandonarem as atitudes de preguiça, apatia e indiferença a fim de acolherem o fogo do amor de Deus. O fogo de Jesus manifesta Sua paixão por Deus e pelo homem. Um fogo ardente e apaixonado que leva Jesus ao máximo da doação e, que aos nossos olhos, é perda de razão culminando com a cruz.
No Evangelho de Lucas, o fogo é luz que deve ser mantida acesa em tempos de crise. O fogo distingue, clarifica e esclarece. O desejo de Jesus de ter o fogo aceso é para iluminar o seu caminho de crise e de dúvidas. O fogo da paixão traz verdade ao rosto, oportunidade para fazer as pazes com o medo da cruz e traz possibilidade de entendimento das dificuldades de seus discípulos.
O fogo aceso mostra a verdadeira face, os desejos do coração e as posições assumidas. Dessa forma, a segunda parte do texto, apresenta um cenário de divisão e conflito. Certamente, no caminho para Jerusalém, os discípulos começam a apresentar muitos conflitos interiores e se dividirem em opiniões. Para eles, era muito difícil compreender a decisão do Mestre de oferecer sua própria vida. O interesse de Lucas ao mostrar o aspecto da divisão e do conflito na comunidade dos seguidores de Jesus é edificar a sua comunidade que começa a experimentar os mesmos sentimentos. À luz do Evangelho de Jesus, os conflitos são inevitáveis, mas necessários para revelar os desejos dos corações. A união deve ser mantida à luz da verdade e da Palavra de Deus.
Paz e fogo devem ser mantidos juntos. A luz do fogo permite distinguir o trigo do joio. Ajuda a organizar e tomar decisões. A paz começa com esta clareza. A divisão que Jesus traz não é conflito, mas verdade. Não pode haver verdade sem distinção. É a divisão da ordem, aquela que precede toda decisão: é preciso distinguir para unir. Jesus pregou a paz não como fruto de compromissos ou de silêncios, mas como fruto da conversão à verdade. A paz pregada pelo Senhor não era uma paz de mentiras, mas de verdade que incomoda, divide, deixa nervosos os que mentem. Tomar uma posição custa, mas é o único caminho de construir e ter a paz interior. É claro que talvez não tomemos posições porque não temos nada a dizer. O fogo se apagou, os desejos desaparecem e os ideais não mais existem.
O Evangelho de hoje é decisivo para recuperar em nós os sentimentos de Jesus. Ele é o protagonista de uma nova humanidade. Suas palavras tornam-se afiadas e nos convidam a abandonar os compromissos humanos e medíocres. Seu Reino é feito de autêntica justiça, paz universal e amor sem reservas. Aqui e agora, as escolhas e estilos de vida nascem na consistência, superando interesses partidários, mesmo de familiares, amigos ou grupos.
O testemunho do Evangelho queima todas as formas de particularismo e mantém a caridade aberta a todos, com a preferência pelos excluídos e marginalizados pelas estruturas de poder. Somos convidados a mudar radicalmente de mentalidade para vivermos uma paixão que faça arder o nosso coração. A imagem do fogo nos desafia aproximar da pessoa de Jesus e viver ardente, apaixonado e sedutoramente Seu seguimento. O fogo de que nos fala o Evangelho, não é outra coisa que a Vida em nós.
O fogo que Ele veio lançar, queima mas purifica, destrói mas ilumina, mostra o que realmente importa e o que vale à pena. É a verdade que a realidade esconde, mas que deve ser buscada, amada e seguida. O fogo de Jesus é o da paixão. Seu Batismo será fonte de angústia, mas, ao mesmo tempo, desejado por Ele porque sabe que será o nascimento de uma nova humanidade. Somente passando pela morte que se vive as contradições da história rumo ao fim. O Batismo de Jesus é emersão em novos tempos. A “divisão” que Ele mesmo experimentou, em torno de si, torna-se discernimento para escolher a coerência, a consistência e a fidelidade no caminho. Este é o lugar do crescimento e da misericórdia, pois nesta passagem necessária, a liberdade encontra espaço, tempo e realização.
Senhor, dá-me a graça de construir um mundo novo, fundamentado na Palavra, no Espírito e no Amor. Um novo mundo, nascido do seu apaixonado coração. Acendei no meu coração o fogo de vossa Paixão. Necessito deste amor para reconstruir e refazer os sentimentos do meu coração. Ensina-me a mudar radicalmente de mentalidade para viver uma paixão que faça arder o coração. Ajuda-me a construir um Reino de autêntica justiça, paz universal e amor sem reservas. Recupere em mim os teus sentimentos.
LFCM.
Gratidão Frei. Paz e Bem.