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O "Apaixonado" pelo Pai

  • Foto do escritor: Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
    Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
  • 12 de mar. de 2022
  • 5 min de leitura

Atualizado: 19 de mar. de 2022

O início do caminho quaresmal revela-nos duas imagens do rosto de Cristo: a primeira mostra o rosto humano do Cristo no deserto tentado pelo demônio que exige Dele continuidade, aceitação e alinhamento com a vontade do Pai e a segunda imagem revela Seu rosto glorioso. O deserto foi o lugar simbólico da solidão e do encontro consigo mesmo e o monte Tabor foi o lugar simbólico da comunhão e da relação com o projeto criativo e salvífico do Pai.


No deserto, os israelitas experimentaram um fato: libertados por Deus, necessitavam de um permanente caminho rumo à plena liberdade. O deserto sempre era um espaço exigente e provocador, pois através dele se descobria a identidade e se aceitava a missão. As tentações que Israel suportou no deserto eram semelhantes às três provações as quais Jesus fora submetido e são as mesmas tentações dos homens de todos os tempos.

O monte foi provocante para o povo, como para Jesus. Do monte veio a Lei para ser observada e vivida e fez com que a aliança se mantivesse com algumas exigências e regras para a convivência comum. Da mesma forma, no monte foi reafirmado para Jesus e seus companheiros o desejo e a exigência do Pai: o sofrimento em Jerusalém e a morte na cruz.

Oito dias após Jesus dizer aos seus discípulos acerca de sua paixão, subiu à montanha para rezar levando consigo Pedro, João e Tiago. Jesus sabia que eles não haviam aceitado a realidade da cruz e da morte, então quis prepará-los para suportar o escândalo da paixão. A escolha desses três personagens não foi feita a partir dos privilégios ou dos méritos pessoais de cada um deles, nem mesmo pela profissão de fé, muito pelo contrário; na verdade, os três eram os mais rebeldes, os mais influentes e persuasivos do grupo dos apóstolos. A Simão ele deu o nome de “cabeça-dura” e pediu para afastar-se Dele; a Tiago e a João chamou de “Boanerges”, filhos do trovão, homens turbulentos, impulsivos e de temperamento forte. Jesus conhecendo e observando o temperamento desses discípulos, os chamou para rezar e para ouvir a Palavra do Pai.


O rosto de Jesus mudou de aparência e suas vestes ficaram brancas e brilhantes. Todos os evangelistas narram este evento, mas somente Lucas falou do rosto e usou o termo “aparência”. Ele não falou de transfiguração, mas de aparência modificada. O evangelista desejou narrar para a sua comunidade o alinhamento que Jesus tinha com o maravilhoso e desafiador projeto do Pai e todas as vezes que Ele ouvia falar desse projeto salvífico, apresentava uma aparência modificada. O rosto mudado e as vestes transformadas revelavam a beleza de um homem “apaixonado” que ao ouvir a voz do Pai sentia-se em plena consonância de desejos e de intenções.

A luz do "rosto apaixonado" de Jesus indica que, durante a oração, Ele ouviu, consentiu, compreendeu e desejou o mesmo desígnio do Pai: um sacrifício que não terminaria em derrota, mas na glória da ressurreição e na revelação suprema do amor.

O evangelista Lucas sublinha o comportamento dos discípulos: “Pedro e os companheiros estavam com muito sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com ele”. Uma atitude semelhante encontramos na narrativa da agonia de Jesus no Getsêmani enquanto, novamente, Jesus rezava (cf. Lc 22,45). O sono é usado pelos autores bíblicos em um sentido simbólico. Nesta narrativa, o sono indica a incapacidade dos discípulos de aceitar que o Messias de Deus devia passar pela morte para entrar em sua glória. Quando Jesus fazia maravilhas, curava tantos, era aclamado pelas multidões, esses três discípulos estavam sempre acordados. Entretanto, quando Ele falava do dom da vida, da necessidade de ocupar o último lugar, da proposta de serem servos, os mesmos três apóstolos não queriam entender. Fechavam os olhos e dormiam para continuar sonhando com um Messias triunfante e poderoso.


Pedro, acordando do sono perdido, disperso e distante, querendo cumprir o papel de chefe do grupo, começou a falar sem sentido. Ele parecia ter a habilidade de falar na hora e no lugar errado. Mesmo sem saber o que dizer, disse: “Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Sequestrado pela “aparência apaixonada" de Jesus quis permanecer na contemplação a fim de não descer para Jerusalém, ver a morte do Mestre e ter que morrer com Ele.

Para Pedro, um Messias preso, flagelado e morto não podia ser concebido em sua imagem de Deus. Era mais conveniente permanecer na contemplação do rosto glorioso do que descer e seguir o Messias desejado por Deus.

"Os discípulos ficaram calados e naqueles dias não contaram a ninguém nada do que tinham visto”. Essa atitude se mostra interessante, pois do sono e de um falar sem sentido, eles passaram para o silêncio diante do mistério. O relato do evangelista nos permite inferir que o objetivo de Jesus ao levar-lhes ao monte para rezar fora alcançado. Um discípulo falador e dois discípulos intempestivos tornaram-se contemplativos, silenciosos. Ao serem levados para o monte, eles mudaram suas atitudes e entraram na dinâmica da conversão. O silêncio de Jesus e a revelação do projeto do Pai fizeram com que os discípulos mudassem suas vidas e aprendessem o silêncio orante: cheio de palavras profundas, de expressões saudáveis e de desejos divinos.


O evangelista Lucas criou um sugestivo paralelo entre as tentações (Lc 4, 1-13) e a transfiguração (Lc 9, 28-36). Essa polarização é aquilo que vivemos e que estamos inseridos no quotidiano. Nesse sentido, a polaridade existente entre a tentação de Jesus e a sua transfiguração é a polarização existente entre as nossas tentações quotidianas e as nossas vontades de oração. Quanto mais nos dispomos a rezar, mais somos tentados pelo sono, pela dispersão e por tantas palavras desnecessárias. Dessa forma, a oração é um espaço físico de luta interior consigo mesmo e de aceitação do desejo de Deus.


Portanto, os dois primeiros domingos da quaresma trazem dois espaços simbólicos significativos. O primeiro deles nos convida viver o necessário propósito da conversão. O segundo vivifica o nosso espírito a fim de estarmos disponíveis ao desejo de Deus. Esses espaços não são duas opções distintas, mas caminhos únicos que nos permitem recordar a promessa e o sentido da nossa missão. Ora entramos no deserto, ora subimos ao monte. O importante é compreender que ambos lugares são de passagem e não de permanência. Na quaresma, o evangelho da transfiguração quer nos ensinar que não vivemos num tempo triste, de rostos sombrios e de palavras pesadas. Subir ao monte une os dois principais objetivos quaresmais: orar com insistência a fim de mudar nossos intempestivos comportamentos e ouvir a voz do Pai para entender sua vontade e escolher desejá-la para nossas vidas.


Senhor, quanta delicadeza em teu gesto de levar os três discípulos mais desafiadores para o monte. Seu desejo de transformá-los fez com que teu rosto se tornasse mais luminoso e transfigurado. Ensina-me o mesmo silêncio e contemplação que ensinastes a Pedro, Tiago e a João. Desejo apaixonar-me pelo projeto salvífico do seu mesmo jeito. Permita-me ouvir a voz do Pai para que eu transforme as minhas atitudes e meus comportamentos a fim de obter uma autêntica conversão. Faça com que a tua “paixão” irradie a minha vida e a dos meus irmãos.

LFCM.

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1 comentário


Marcia Severo
Marcia Severo
13 de mar. de 2022

Bom Dia Frei!!! Grata por seu belíssimo texto, ajuda- me a refletir o qto esse Evangelho é maravilhoso, qtos ensinamentos ele nos traz. Orar para q o Senhor nos dê a graça de exercitarmos com fé uma transformação interior, um crescimento espiritual q Ele quer de nós. Paz e Bem.

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