A recuperação da autonomia
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.

- 7 de set. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 14 de set. de 2024
Num tempo marcado pelo rigorismo religioso, num ambiente cheio de legalismo, Jesus procurou exercer o seu ministério em terras pagãs. Tanto Tiro, quanto Sidônia e as dez cidades da Decápole eram terras pagãs. Com isso, o evangelista quis dizer que, ao contrário da Lei, o Evangelho não estava destinado apenas para Israel, mas para todos. Nenhuma barreira cultural ou religiosa poderia impedir a difusão da boa notícia e da comunicação da vida divina. Nesse contexto missionário e audacioso, trouxeram a Jesus um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram-Lhe para que Lhe impusesse a mão. Esse episódio é narrado exclusivamente no Evangelho de Marcos e tem o interesse de revelar a humanidade e a pedagogia de Jesus.
A surdez era uma das maiores maldições daquele tempo porque impedia de ouvir a Palavra do Senhor, proclamada nas Sinagogas. Sem as normas da Torá, o ser humano estava perdido, sem rumo, impedido de caminhar corretamente. Não podendo falar com clareza, nem escutar, o surdo estava condenado a um doloroso isolamento. Não conseguindo interagir e se relacionar com os outros, se afastava da sociedade e vivia solitário.
O homem trazido até Jesus era um enfermo de comunicação, pois não conseguia expressar seus desejos, suas vontades e nem se comunicar de verdade com os outros. Tudo isso fez dele uma pessoa sem iniciativa e sem amizades reais. As pessoas que o levaram até Jesus eram anônimas. Ele era um escravo da sua própria surdez e mudez.
Entretanto, Jesus acolheu, tomou consigo e tratou-lhe como irmão/amigo, iniciando uma terapia de proximidade exercendo sua humanidade. Jesus não lhe ensinou qualquer doutrina ou complicou sua vida com leis e normas rígidas ou pesadas.
O gesto terapêutico escolhido por Jesus foi bastante simbólico. Há algo de extraordinário nesse fazer de Jesus. Não tendo medo de tocar, experimentou e viveu uma comunhão concreta. Ele afastou-se com o homem, para fora da multidão, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. O gesto de Jesus foi pessoal e reservado para o homem que não ouvia e nem falava com facilidade. O Mestre fez um gesto individualizado e pessoal para fugir do espetáculo da sociedade.
No seu gesto acolhedor, Jesus tocou toda a estrutura do homem surdo. Ele não fez uma mágica, nem somente um milagre, mas teve a coragem de tocar o homem que não podia ser tocado. Para oferecer-lhe um relacionamento pessoal e íntimo, Ele fez gestos que expressaram forte proximidade e contato profundo.
O evangelista Marcos apresenta em toda a narrativa uma potente relação: mãos, dedos, ouvidos, língua, saliva e olhar. Todos os sentidos do homem foram tocados para que ele voltasse a viver. Tudo foi destravado para que ele retornasse à vida social e não mais dependesse de alguém. Tudo foi aberto por Jesus para que ele conseguisse abrir-se à nova vida. Jesus destravou os sentidos do pobre homem excluído e capacitou sua integração total para a convivência social. Com os sentidos abertos, ele pode expressar a riqueza de sua interioridade. Uma vez libertado da atrofia dos sentidos, o homem recuperou sua autonomia, podendo manifestar-se sem bloqueios, encontrando novas relações e não limitando seus sentimentos.
Após toda essa gestualidade simbólica, olhando para o céu, Jesus suspirou e disse: Efatá. O significado dessa palavra hebraica é “abre-te”. A possibilidade de abrir-se ao novo depende da potência divina, por isso, o Mestre olhou para o céu. O Efatá foi uma oração ao Pai e um convite dirigido ao homem surdo. O Cristo convidou aquele homem a abrir-se às relações decepcionantes e a abandonar a vida passada que o impedia de ser liberto e curado. Foi necessário que ele obtivesse uma nova identidade.
O imperativo “abre-te” é uma ordem dada não apenas aos órgãos deficientes, mas a toda a estrutura da pessoa. Efatá é a única palavra que Jesus pronunciou na narrativa evangélica.
Segundo o texto, à ordem de Jesus, “imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade”. O evangelista nos mostra um detalhe interessante: o homem voltou a falar sem dificuldade porque sentiu-se amado, cuidado, abraçado e tocado. Falar sem dificuldade significava voltar a dizer algo sensato, sem arrogância, sem dominação ou sem engano. Ele aprendeu a falar com o coração e com os gestos, em prol da comunhão, da unidade, da justiça e da paz. Hoje, somos convidados, a permitir que nossos ouvidos se abram a tudo o que Jesus nos ensinou a fim de que sejamos autênticos ao anúncio e ao testemunho do Reino.
Senhor, liberta-me da atrofia dos sentidos para que eu possa viver de forma autônoma, manifestar-me sem bloqueios, ir ao encontro de novas relações e não limitar os meus sentimentos. Cura-me para que eu possa viver integralmente. Ajuda-me a falar com o coração, a acolher com os gestos e a anunciar sem dificuldades o teu verdadeiro amor.


Bom Dia Frei!! “…falar com o coração…” para poder viver livremente das imposições q o mundo nos oferece. Gratidão. Paz e Bem.