A Jerusalém interior
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 1 de abr. de 2023
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A liturgia deste domingo antecede a semana da "morte de Deus" colocando-nos na atmosfera da Semana Santa e dos últimos acontecimentos de Jesus em Jerusalém. Jesus tomou consciência da hora decisiva da Paixão após ter dado vida ao amigo. Ele não teve medo e nos deixou o exemplo. Esses fatos revelam o ápice da vida terrena do Cristo e o coração de Sua missão nesta terra.
Nesse sentido, somos convidados a reviver estes eventos e a participar deles, não apenas como simples recordação do passado, mas como atualização do mistério da Paixão, Morte e da Ressurreição do Senhor. O convite às celebrações não serve para lamentarmos a morte de Jesus, mas para regozijar-nos pela libertação ofertada ao dar-nos sua vida.
A narrativa litúrgica entrecruza dois sentimentos: a alegria ao ver o Senhor entrar em Jerusalém e a compaixão ao ver o Senhor morrer por amor. Esta celebração tem duplo sabor: doce e amargo. É jubilosa e dolorosa, pois nela celebramos o Senhor que entra em Jerusalém, aclamado pelos seus discípulos como rei. Porém, ao mesmo tempo, proclama-se solenemente a proclamação evangélica de sua Paixão. Vemos que Jesus não nos salvou com uma entrada triunfal como a de um rei ou um príncipe. Nem por meio de milagres prestigiosos, mas aniquilando-se a si mesmo, renunciando à glória de ser o Filho de Deus tornando-se Filho do homem, solidarizando-Se em tudo conosco, vivendo uma “condição de servo”.
A ideia do triunfalismo messiânico, doentio, desejado e esperado pelos judeus foi destruído pela Paixão do Cristo. Sua entrada triunfal como Rei-Messias foi realizada montado num jumento: “Eis que o teu rei vem ao teu encontro, manso e montado numa jumenta e num jumentinho, filho de um animal de carga” (Mt 21,4-5; cf. Zc 9,9). Este evento em Jerusalém revela a espontaneidade do povo simples. Nada de grandes solenidades e de paramentos maravilhosos. Para Jesus, basta-Lhe um jumentinho. O restante foi iniciativa da multidão que se une a Ele enfeitando o caminho e entoando hinos messiânicos. Mantos são colocados como tapetes pelo solo, ramos de oliveira e palmas, cantos, gritos de louvor, vivas e aplausos.
Todos os evangelistas narram a Paixão e a Morte de Jesus sob diferentes óticas e perspectivas. Alguns, bem mais detalhados, enquanto outros, mais sucintos. Os detalhes de cada narrativa estão relacionados ao contexto vivido por cada comunidade e alicerçados naquilo que acreditavam ser necessário para transmitir a mensagem desejada. Neste ano, proclamamos a narrativa da Paixão, segundo o evangelista Mateus. A catequese de Mateus perpassa o conflito entre Jesus e seus adversários, mormente, os escribas e os fariseus, um grupo apegado, de forma exagerada, à lei mosaica.
Mateus, insere o relato da Paixão de Cristo, depois da purificação do templo e da cura dos cegos e dos coxos. Ele não vem como destruidor e não vem com a espada de revolucionário. Ele vem com o dom da cura. Jesus mostra Deus como Aquele que ama e que exerce seu poder com amor.
Em torno da paixão e morte de Jesus, os evangelistas colocaram uma série de personagens. Pôncio Pilatos, a autoridade romana da Palestina no tempo de Jesus. Judas Iscariotes, o traidor, ocupando o primeiro lugar. Com ele, Pedro, o discípulo que nega o Mestre três vezes. Simão Cireneu, forçado a ajudar Jesus carregar a cruz. Verônica, que enxuga-lhe o rosto ensanguentado fazendo ficar impresso na toalha a figura do "condenado". Os soldados romanos encarregados de crucificar Jesus fazem brutalidade com Ele. As “marias” que permanecem até o fim ao lado do Cristo. Tirando as mulheres, os principais personagens não querem fazer o que fizeram. Pedro nunca quis negar seu Senhor. Judas traiu e depois se arrependeu tragicamente. Pilatos não quis entregar o Nazareno nas mãos dos judeus, mas cedeu aos sinistros cálculos políticos. Jesus sofreu a traição do discípulo que O vendeu e do discípulo que O renegou. Foi traído pela multidão que primeiro clamava hosana, e depois “seja crucificado!” (Mt 27, 22). Foi traído pela instituição religiosa que O condenou injustamente e pela instituição política que lavou as mãos.
Traição, festa e ceia, oração e angústia, violência e condenação, arrependimento, profissão de fé e decisão, solidariedade e delicadeza foram os principais elementos da narrativa da Paixão. Todo o desfecho tinha o objetivo de mostrar para a comunidade como o evento da Paixão e da morte de Jesus revelava situações públicas e particulares: um contraste de sentimentos e uma contingência de situações.
Nesses contrastes está o ponto fulcral da festa de hoje. Da traição de um à solidariedade do outro, da violência dos discípulos à delicadeza das mulheres, da festa à morte. Tudo revelava a decisão de Cristo ir até o fim ao projeto do Pai. Em Cristo, das trevas chega-se à luz, da morte à vida, do ódio ao amor.
Os Evangelhos são claros. Jesus sempre avisou aos seus amigos que sua estrada era aquela na qual a vitória final passaria através da Paixão e da cruz. Fazer memória da entrada de Jesus em Jerusalém é uma ocasião privilegiada para transitarmos por nossa “Jerusalém interior”, espaço onde podemos nos encontrar conosco mesmos identificando-nos com um ou mais personagens que fizeram parte da história. O relato da Paixão de Jesus revela a história de cada um de nós, porque, afinal de contas, é uma história que aconteceu no passado e continua acontecendo em nosso interior.
Levando a sério nossa história pessoal somos conscientes de que o contraste e a contingência estão sempre presentes em nossas vidas. Por um lado, parece que somos levados para baixo: ao egoísmo, à mentira, à traição e ao mal. Somos afastados de Deus e da sua bondade. Por outro lado, somos elevados para o bem, reconhecendo ser amados por Deus e pelos outros procurando elevar nossos sentimentos. No meio desta dupla força nos encontramos e tudo depende da liberdade que temos em atrair a verdade e o amor.
Podemos escolher dar o “beijo da traição” ou o “beijo do amor”. Judas escolheu trair, as mulheres escolheram ficar com Ele até o fim. Judas sozinho tornou-se demasiado frágil para elevar o coração à altura de Deus e elas, aos pés da cruz, reconheceram a extrema forma de amar. No entanto, Jesus permitiu ser beijado por ambos. No projeto da sua vida nada mudou, mas a escolha dos que O beijaram fez a diferença.
Podemos escolher um caminho “confortável” orientando-nos para a vulgaridade consumista das relações e precipitarmo-nos no pântano da mentira, da maldade e da desonestidade. Entretanto, se caminharmos com Jesus diante de nós, seremos elevados para o alto. Somente Ele pode vencer a tendência da maldade que habita em nós. Ele nos conduz para o grande, para o puro e para o belo. Somente Ele nos dá a vida segundo o Espírito com autenticidade e verdade. Jesus nos leva ao silêncio interior oposto as tagarelices e opiniões dominantes. Ele concede-nos paciência dando suporte e alimentando o faminto de vida. Ele conduz à disponibilidade do coração e para a generosidade da vida. Enfim, Jesus nos conduz para o bem que não se desarma em preconceitos e em ingratidão. Ele nos conduz para o verdadeiro amor: Deus.
LFCM.
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