A imagem de Deus em Jesus
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.

- 2 de abr. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 22 de abr. de 2022
Jesus estava ensinando no Templo quando os escribas e os fariseus trouxeram-lhe uma mulher flagrada em adultério e perguntaram se deviam apedrejá-la como estava prescrito na Lei de Moises. Este questionamento foi elaborado para testar e acusar Jesus colocando-O em contradição com a Lei a fim de executá-lo por crime de blasfêmia. O fato nos permite inferir que o principal alvo da narrativa é Jesus e não apenas a mulher adúltera. O desfecho desta situação mostra-se problemático, conturbado e muito exigente para “os religiosos que se autodenominam mais fiéis do que o povo”.
Quando os livros do Novo Testamento foram transcritos, esse trecho do Evangelho foi retirado de quase todos os exemplares de Bíblia. Os líderes de comunidades, os maridos e os pais pensavam que a frase “eu não te condeno”, proferida por Jesus à mulher pecadora, provocaria mal-entendido e equivocadas interpretações. O trecho tornou-se tão forte que somente no século IV foi admitido nas celebrações litúrgicas. Duvida-se quem teria sido o escritor oficial porque embora este fragmento esteja no capítulo 8 do evangelista João, o tema, a linguagem e o estilo são semelhantes aos escritos do evangelista Lucas.
Um evento imprevisível perturbou a pregação de Jesus no Templo com violência e desrespeito: os homens que cuidavam da casa de Deus queriam matar uma mulher “sem nome”, pois ela não havia respeitado a Lei. Para os mestres da Lei e para os fariseus aquela mulher não era ninguém, mas apenas um “objeto”. Eles não eram capazes de perceber a história, o rosto, os sentimentos, os problemas e a dignidade do ser humano que estava à sua frente. Obstinados pela Lei, traziam em suas mãos pedras que condenavam à morte. Para esses homens, a mulher não havia cometido apenas o pecado do adultério, ela "era" uma adúltera estigmatizada a partir do seu pecado. Vítima de julgamento, estava no centro da morte, pois não havia outra saída perante a lei mosaica. Entretanto, Jesus entra em cena e torna-se o centro das atenções junto com aquela mulher.
Os acusadores se apresentavam como especialistas em “direito” e como modelos de justiça a serem seguidos. Tudo o que faziam estava destinado para que fossem irrepreensíveis e observadores fiéis da Lei. Eles desejavam fazer de Jesus um juiz. Irredutíveis nos fáceis legalismos, tentavam colocar o Filho de Deus na mesma perspectiva de juízo e condenação.
Nessa tentativa aconteceu um gesto inesperado que colocou um fim naquele jogo. Duas atitudes contrapostas: de um lado, os escribas e os fariseus e do outro, Jesus. Os primeiros desejavam condenar a mulher porque se sentiam os tutores da aplicabilidade fidedigna da Lei. A atitude de Jesus era de salvá-la porque Ele manifestava em si a nova personificação de Deus.
Jesus evitando o papel que lhe foi imposto e rompendo a dinâmica com a qual estavam presos os mestres da Lei e os fariseus, levantou-se, deixando o espaço reservado ao juiz, ofereceu a possibilidade de salvar a mulher, convidando todos olharem de modo alternativo para aquele pecado. Convidou todos à consciência da condição de homens pecadores, pela qual não podiam arrogar-se o direito de vida ou de morte sobre seus semelhantes. Por meio de suas intuições e ações, Jesus declarou que não seria vítima passiva de um combinado institucional e homicida. Recusando responder à pergunta dos fariseus e silenciando, obrigou-os a desviarem o olhar. Inclinando-se, começou a escrever com o dedo no chão. Esses gestos harmonizavam a miséria humana e a vontade de Deus expressa nas Escrituras.
Nesse encontro, Jesus não viu o pecado, mas o sofrimento e a situação miserável daquela mulher pega em adultério. Por isso, sua ação foi de caridade, de proximidade e não de violência. Através dos seus gestos e da sua postura, revelou a dissonância existente entre Ele e os mestres da Lei. Abaixou-se, silenciou e escreveu no chão. Os mestres da Lei ficaram em pé, insistiam no interrogatório e citavam a Lei.
O abaixar-se revela sua capacidade de ir ao encontro da solidão abismal e o permite compartilhar a mesma dor daquela mulher.
Jesus poderia ter saído de modo simples e objetivo daquela armadilha. Poderia ter enviado aquela mulher aos juízes legítimos. O tribunal do Sinédrio estava ali próximo. Entretanto, abandoná-la diante dos “defensores da moralidade pública” e de “pessoas obcecados pelos pecados sexuais dos outros” seria contraditório com a imagem de Deus em Jesus. A mulher adúltera serviria para eles como um troféu e presa fácil. Assim, Jesus denunciando a hipocrisia deles, elabora uma afirmação em forma de questionamento: “quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”. Os que ali estavam começaram a se sentirem mal, pois agora estavam expostos àquilo que temiam. Abaixaram os olhos, tentando assumir uma atitude despreocupada e esquivando-se do constrangimento e da vergonha. Então, começando pelos mais velhos, afastaram-se do local do julgamento. A afirmação-questão de Jesus não contradisse a Lei mas, ao mesmo tempo, confirmou sua ação concreta de misericórdia tocando diretamente o coração dos prepotentes acusadores.
No Evangelho de Lucas há uma história parecida e com personagem semelhante (cf. Lc 7,36-50). Não devemos confundir a pecadora perdoada de Lucas com a mulher adúltera de João. A primeira mostra-se bastante arrependida: chora, banha os pés de Jesus com lágrimas, enxuga-os com os cabelos, cobre-os de beijos e unge-os com o perfume. A segunda não faz nenhum desses gestos e nada diz, não tem qualquer iniciativa da sua parte, mas é pega em flagrante, agarrada, ameaçada, espancada e jogada na frente de Jesus por estar em adultério. Jesus não apenas acolhe uma pecadora, mas uma mulher e restitui-lhe a dignidade. Ele olha o seu interior e a resgata dos olhares de morte que a condenavam. Ele inicia o diálogo, transgredindo a Lei que não permitia um judeu dirigir-se em público a uma mulher desconhecida, sobretudo, na situação e na condição na qual ela se encontrava. De uma possível relação com todos aqueles homens que a condenavam, a mulher passou a se relacionar apenas com Jesus.
O discurso de Jesus retira aquela mulher da exclusão e a reintegra num relacionamento saudável. Em seguida, Jesus a despede com palavras fortes e profundas: “Vai, pare de se machucar, e decida não arruinar a tua existência com poucas coisas”. Assim Ele possibilita um novo caminho, cheio de misericórdia com o compromisso de não mais pecar.
Esta narrativa nos ajuda em nosso caminho de conversão pois nos alerta sobre o perigo de nos tornarmos perversos e arrogantes, donos e exploradores da Lei apenas para a nossa autopromoção e não para promovermos o Reino de Deus. O prazer daqueles homens era a manipulação a fim de justificarem seus erros e condenarem os outros: era preciso encontrar uma vítima para que eles passasem despercebidos. Jesus põe fim nesse jogo fazendo com que os interlocutores da mulher se tornassem os acusados. Ele os faz olhar para dentro de si e a reconhecerem a perversão que estava dentro deles. O olhar alternativo de Jesus diante dos outros é um olhar que não condena fragilidades, mas acolhe com perdão mudando histórias e transformando vidas. Os códigos moralizantes e as estruturas doentias que constroem e formam "nossa espiritualidade" dificultam entender o perdão ilimitado de Deus para com os pecadores. Precisamos nos libertar dessa atitude de prepotência para proclamarmos com nossas atitudes e palavras um Deus de extraordinário amor e misericórdia.
Senhor, ensina-se a ter um olhar distante do julgamento, da arrogância, da prepotência e da humilhação. Não permita-me com que eu julgue a partir das minhas simpatias, empatias ou apatias, dos meus medos ou necessidades. Dai-me um olhar admirado e gratuito que transforma, liberta e se compadeça da frágil realidade humana. Faça com que minha consciência não sinta-se melhor do que a dos outros. Retira do meu ser toda e qualquer autoridade que se distancie do teu Evangelho e da tua forma de viver.
LFCM.


Oi Frei gratidão por essas palavras de transformação interior, nos ajuda a crescer na relação com o Senhor. Nossa luta é diária. Paz e Bem.