A condenação da indiferença
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 24 de set. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 5 de nov. de 2022
Depois dos dois filhos perdidos e do administrador astuto, os personagens principais do Evangelho deste domingo são um “homem rico” e o pobre Lázaro. Jesus quer mostrar qual o sentido da vida e alertar contra a sutil tentação de viver apenas para si mesmo. Esse homem rico devora todas as coisas e vive somente para si. Somos todos expostos a essa voz que nos incita a pensar antes de tudo em nós mesmos. Até Cristo, na cruz, passou pela mesma tentação.
Uma leitura rápida do Evangelho pode nos colocar diante da necessidade de dar esmolas em favor da justiça ou de um comportamento moral mais eficaz. No entanto, não é essa a intenção da parábola. Jesus tem o interesse de mostrar um percurso humano que dure toda a vida, não apenas num momento de “caridade”. O texto mostra a construção do nosso destino e as escolhas que fazemos falando de duas vidas: a do homem rico e a da homem pobre.
O fim do homem não é decidido no momento derradeiro, mas através das decisões, escolhas e opções que toma durante toda sua história. No percurso da vida, podemos escolher a indiferença e a condenação ou construirmos uma verdadeira história de salvação. O Senhor sempre intervém no nosso caminho e na nossa história, mas sempre somos os responsáveis pelas escolhas que fazemos e pelas decisões que tomamos.
A parábola está dividida em duas partes: narração (vv. 19-23) e diálogo (vv. 24-31). A primeira parte relata os três momentos comuns entre homem rico e o pobre Lázaro. Primeiro, em vida, na porta de casa; depois, na morte, parecem que morrem ao mesmo tempo; por fim, na vida após a morte. Após a morte, o homem rico vê Abraão e do lado dele o pobre Lázaro. O rico nunca viu Lázaro em vida, e depois da morte, na visão que Lucas apresenta, o vê como um servo, jamais como um irmão: “Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas”.
O homem rico não tem nome. A riqueza é a sua identidade. Ele vive num inferno daqueles que não tem identidade e se isolam. Nem mesmo Deus tem um nome para ele. O nome Lázaro significa “Deus ajuda”. Na identidade do pobre, Deus está presente. A ausência de nome no rico consiste a ausência de Deus manifestada na distância e na indiferença para com o outro. No caso parábola, do pobre Lázaro. Na Bíblia, algumas vezes, encontramos personagens que não são identificados ou que são lembrados apenas pelas funções que exercem. Dizer que não tem identidade é dizer que não tem consistência pessoal, não tem rosto, está distanciado de si mesmo e, portanto, faz qualquer coisa e vive sem limites, pois não se sente responsável por nada, nem por si mesmo. O rico que festeja todos os dias não vê Lázaro e, sobretudo, não vê a si mesmo. Provavelmente nem sabe que existe um eu para ver. Como ele não tem a identidade em si próprio, procura-a fora dele, nos banquetes luxuosos, no poder excessivo e numa vida sem limites.
O estilo de vida do homem rico é descrita: “ele se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias”. Na linguagem do Evangelho, Jesus faz o convite de não nos preocuparmos com o que vestir e com o que comer. Vestir e comer são duas ações importantes e, talvez, as maiores preocupações do ser humano. Preocupar-se com o vestido significa perturbar-se com a imagem apresentada aos outros e com os julgamentos alheios. Há uma luta constante para encontrarmos uma “máscara" que agrade o mundo sem mostrar nossa verdadeira identidade. Preocupamos com o que vamos comer porque não confiamos no mundo e achamos que temos que “caçar” para conquistar nossas “presas”.
A vida vivida pelo rico é o contrário da imagem de Cristo: ele se veste, o Cristo se despoja; ele se entrega a banquetes fartos, Cristo dá seu corpo como alimento. Foi a excessiva preocupação consigo mesmo que cavou sua própria cova e abriu o abismo que o separou dos outros e de Deus. Esta parábola fala mais do presente do que do “mais além”; fala de tudo o que podemos mudar aqui e agora a fim de termos um futuro glorioso.
Ao contrário do rico, Lázaro é aquele que vivencia a necessidade. Ele quer se alimentar: sua fome o impele a não deixar de desejar. Lázaro procura, está aberto à vida. E, de fato, Deus tem um nome para ele. Lázaro não está isolado porque não está saciado. Ele inevitavelmente precisa do outro, do homem rico. Não é suficiente para si mesmo. O pobre é pobre não porque está ferido, mendigo, sem comida, mas porque está privado e frustrado em seu desejo: “ele ansiava por se alimentar com o que caía da mesa dos ricos”. Contudo, esta parábola relata a condenação do rico, embora não tenha transgredido nenhum dos mandamentos: nada sabemos se ele foi ladrão, adúltero, assassino ou tenha deixado de cumprir as obrigações religiosas. O homem rico foi condenado porque não soube partilhar sua própria vida com Lázaro. Para Lucas, os bens que Deus deu a ele não deviam ser apenas para si mesmo, mas para todos os homens: tudo vem de Deus e toda apropriação é ilícita. O verdadeiro pecado é não pensar e não cuidar dos outros. Os mandamentos continuam sendo um bom caminho para a humanidade e para a formação da consciência. No entanto, Cristo mostra a superação deles através de um estilo de vida renovado à luz do Evangelho. O cristão não é quem não mata, mas quem dá a vida e faz viver; não é quem não rouba, mas quem compartilha seus bens com os outros.
O rico não é condenado por sua riqueza, mas por nunca ter percebido um necessitado à sua porta. Ele estava lá, todos os dias, implorando por uma caridade e o homem rico não o enxergava. Sua condenação consiste no ato de não ver e seu pecado mortal é a indiferença, pois o oposto do amor não é o ódio, mas a indiferença. O rico é condenado por sua indiferença. Este é o centro da parábola. A mesma terra que se apegou, tornou-se a sua sepultura. Essa terra, à qual ele se apegou zelosamente, caiu sobre ele. O “inferno da condenação” é uma construção cotidiana que é feita durante toda uma vida, sobretudo quando nos fechamos em nós mesmos, confiando apenas em nossas seguranças, assumindo papéis e máscaras que nos distanciam da realidade, da identidade plena e do futuro glorioso. A parábola coloca em evidência, sem piedade, as contradições vividas pelo rico. Sua vida está prisioneira da exterioridade, da superficialidade, da insensibilidade e da corrupção da riqueza.
Encontramos na parábola uma troca de situações: “Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado”. No fim da narração e do diálogo, percebemos que o rico está na situação inicial de Lázaro. Lázaro queria “matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico”. Entretanto, agora é o rico que deseja refrescar-se com uma gota de água vinda de Lázaro.
No início da parábola, o rico estava vestido de ricos ornamentos enquanto Lázaro estava carregado de feridas. Enquanto o rico vivia, nunca clamou o nome de Lázaro. Agora, quando estava no tormento, o primeiro nome que clama é o de Lázaro. O abismo não é casual, nem é provocado por Deus que castiga o rico por toda a eternidade, mas é consequência da indiferença do homem rico que, em sua cegueira, nunca “viu” o pobre jogado ao chão, mendigando à sua porta.
Portanto, o Evangelho de hoje nos ensina o estilo de vida de dois personagens: o homem rico escolheu para si a riqueza e a indiferença, enquanto, o pobre viveu sua indigência e mendicância. Um personagem consegue ser algo, além de um adjetivo. Ele é lembrado por seu nome, substantivo próprio: Lázaro. Enquanto o outro, nada se sabe além da evidência de seu adjetivo “rico”. Ele não construiu uma história de redenção, e nem identidade e futuro. Mesmo envolvido por ornamentos e pela hipocrisia da vaidade, não construiu sua dignidade diante de Deus e dos homens. Aqui estão os dois caminhos, os quais podemos e devemos escolher para viver nossas vidas: o caminho daquele que consegue ter um próprio nome e o outro que, preocupado consigo mesmo, egoísta, vaidoso e indiferente não consegue ter um nome com dignidade para ser lembrado, mas apenas uma qualidade que o leva a sua própria condenação e não o permite ser reconhecido no futuro glorioso.
Senhor, ajuda-me a abrir minha porta e acolher o rejeitado, o ferido e o desprezível. Retira-me da indiferença, do egoísmo e da vaidade que me torna insensível e me impossibilita de enxergar os outros que estão ao meu lado. Dai-me olhos compassivos para reduzir meus abismos interiores e fazer crescer minha sensibilidade frente aos “lázaros” da vida. Ensina-me aceitar minha história de salvação por toda a eternidade. Torna-me coerente em minhas escolhas para que eu entenda que meu futuro glorioso é consequência daquilo que vivo aqui e agora.
LFCM.
Bom Dia Frei gratidão por enviar essas palavras q ué me trazem caminhos para salvação. Fique bem.