A abundância generosa
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 3 de jun. de 2023
- 5 min de leitura
A celebração de hoje não simboliza a memória de algum acontecimento da história da salvação, mas a origem de todos os acontecimentos salvíficos: tudo começa no Pai, assume forma no Filho e continua vivo no Espírito Santo. O mistério admirável da Santíssima Trindade nos faz contemplar o mistério de um Deus que incessantemente cria, redime e santifica. Por isso, para falar da Trindade não precisamos recorrer a detalhes ou dogmas teológicos abstratos, nem construir histórias que alimentem a nossa fé infantilizada. A Trindade além de uma verdade a ser pensada, ela é uma presença a ser vivida.
A Trindade é a revelação de um Deus que vive em relação. Ele não é solidão infinita que vive num desejo incessante de vigiar o homem. Deus é uma realidade viva, dinâmica e familiar. Na Trindade, falamos do Filho porque existe um Pai e vice-versa. O amor relacional entre o Pai e o Filho gera o Espírito Santo. Não consegue entrar no intercâmbio entre o Pai e o Filho, quem não recebe no coração seu amor mútuo, o Espírito da Verdade. É Ele quem nos insere no seio da Trindade nos revelando a verdade trinitária. É o Espírito que faz com que sejamos filhos do Pai através do seu único Filho. Desse modo, a força do alto, a potência de Deus e a eficácia da graça é o Amor.
Toda a história de Israel pode ser resumida na busca de Deus pelo homem e na busca do homem por Deus. Essas buscam são sinalizados nos movimentos: Deus desce ao encontro do homem e o homem sobe ao encontro de Deus. Olhando para este movimento, vemos que um bom relacionamento com o Divino não pode ser nem muito céu nem muito terra. Uma boa relação espiritual é marcada pelo equilíbrio divino-humano. As nossas relações se dividem quando caminhamos em direções opostas a esse movimento. A verdadeira prova do amor está no esforço de mudarmos nossos direcionamentos pessoais a fim de nos encontramos com o outro. Em sua glória, Deus poderia permanecer no alto dos céus para que permanecêssemos apenas seres terrenos e eternamente mortais. Mas Ele não quis assim.
Os povos pagãos imaginavam Deus como um soberano poderoso e terrível, sempre pronto a se zangar com aqueles que não lhe ofereciam sacrifícios ou com aqueles que violavam suas leis. Também, puniam com doenças e infortúnios aqueles que não o agradavam. Com isso, um dos artigos mais firmes da fé judaica era de que Deus fora o juiz de toda obra humana. O próprio Messias era esperado não como aquele que venceria o pecado, mas como aquele que executaria a justiça divina. Entretanto, em Jesus, o Deus de Israel, revela-se um rosto completamente novo que não é imprevisível e melindroso, não ameaça, não é o Ser supremo exigente e ardiloso, diante do qual se treme e se vive a angústia. Jesus nos diz de forma profunda e definitiva quem é Deus. Somente Ele nos conta a surpreendente novidade de que Deus é Trindade. Ele olha com ternura para os homens, compreendendo seus erros e os amando sempre, mesmo quando se mostram fragilizados, não conseguindo caminhar pela estrada reta ou quando recorrem ao pecado.
No Evangelho de João, nem o Pai e nem Jesus aparecem como juízes que condenam, mas como salvadores do homem: “Deus não enviou o seu Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (v. .17); “Eu não vim para condenar o mundo, mas para salvar o mundo” (Jo 12,47). Essa é a Verdade que o Espírito Santo recorda e continua revelando. O juízo de Deus é sempre salvação. Não é uma sentença de condenação, mas uma oportunidade livre para que o homem escolha à vida. Nesta perspectiva, devemos ler e interpretar o terceiro e último versículo do Evangelho de hoje, destacando a responsabilidade de todos perante o amor de Deus: “Quem nele crê não é condenado, mas quem não crê já está condenado” (v.18).
Jesus narra que o Espírito Santo nos garante à possibilidade de entrarmos no mistério de Deus.A experiência com a promessa defensiva do alto nos permite entrar na mútua relação trinitária. Pai, Filho e Espírito Santo não são três realidades separadas ou três realidades que conheceríamos separadamente, mas conhecemos o Pai, através do Filho e por meio da ação do Espírito Santo. Somente após vivenciarmos a promessa do alto, mergulhamos no mistério de Deus narrado por Jesus. Inseridos no seio da Trindade pelo Espírito, somos convidados a nos movimentarmos de igual modo. É preciso aprender o ritmo, acertar os passos e vivenciar a beleza desse relacionamento. O compasso e a vibração da Trindade nos ajudam criar o novo mundo. A liberdade de Deus que ama seu Filho unigênito e a liberdade do Filho que deseja responder o amor do Pai, devolvendo a Ele tudo, inclusive, sua própria vida, nos mostram a grandeza da generosidade divina. Um vibra a generosidade abundante com o outro e ambos vivem a partir dessa abundância generosa.
Os textos litúrgicos deste domingo nos mostram o desejo amoroso de Deus. Ele caminha conosco, nos perdoa, nos compreende e nos ensina quais devem ser nossas ações de amor, de perdão e de paz. Ele nos ama para que nos amemos. Ao amar, tornamo-nos cada vez mais semelhantes ao Amor. Entretanto, quanto mais damos espaço ao rancor, às reclamações, à mágoa, ao desprezo e à mentira, mais nos distanciamos da imagem divino-humana de Deus. Ao contrário, quanto mais damos espaço ao generoso amor de Deus, mais vivenciamos relações saudáveis na história de nossa vida salvífica.
Acreditar no amor e na ação amorosa de Deus é o que nos torna cristãos plenos e realizados. Quem não acredita se condena à eterna infelicidade vivendo relações não saudáveis, descartáveis e interesseiras. É uma contradição pensar em cristãos que preferem viver sozinhos e querem conservar uma fé isolada. Somos todos chamados a testemunhar e anunciar uma fé relacional e dinamizada a partir da Trindade Santa. Somos todos chamados a viver a comunhão, segundo o modelo da Comunhão Divina: não uns sem os outros, mas uns com os outros. Portanto, a festa da Trindade nos convida a reconhecer que fomos criados à imagem do Deus Uno e Trino. Somos união e relação!
A liturgia deste domingo nos convida a celebrar o mistério da Trindade para confirmarmos a presença e não simplesmente a existência de Deus no meio de nós. Ele é próximo de nós, nos ama, caminha conosco, se interessa pela nossa história pessoal e pelos nossos fracassos. Ele cuida de cada um de nós. A festa de hoje - introduzida muito tarde no calendário litúrgico (apenas por volta de 1350) – nos oferece uma grandiosa oportunidade: através da reflexão da Palavra de Deus devemos purificar a imagem que temos de Dele descobrindo novos e surpreendentes traços do Seu rosto humano-divino.
Trindade Santa, dai-me a graça de vivenciar tua presença em minha vida. Direciona-me sempre ao teu encontro. Ensina-me o ritmo do amor, acerte os meus passos e ajuda-me a vivenciar a beleza da salvação. Quero viver na abundância da tua generosidade amorosa, no compromisso saudável das relações e na descoberta surpreendente dos novos traços do teu rosto divino-humano.
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