O ministério da reconciliação aos leigos?
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.

- 30 de dez. de 2018
- 18 min de leitura
Atualizado: 19 de ago. de 2021
MARQUES, L.F.C. O ministério da reconciliação aos leigos?. In: Thiago Aparecido Faccini Paro. (Org.). Atualização Litúrgica. 1ed. São Paulo: Paulus, 2018, v. 1, p. 209-223.
Estamos iniciando um ano de gratidão e reconhecimento à força dos leigos e leigas na Igreja, mas também uma boa ocasião para refletirmos sobre a força ministerial na vida daqueles que pertencem ao sacerdócio de Cristo pela grandeza do dom batismal e da efusão do Espírito Santo. Dessa forma, a Igreja no Brasil vive uma ocasião de singular reflexão e aprofundamento.
Não é mais possível pensar uma Igreja que não incentive a participação e a corresponsabilidade dos cristãos leigos e leigas na missão. O empenho para que haja participação de todos nos destinos da comunidade supõe reconhecer a diversidade de carismas, serviços e ministérios dos leigos. Este devem ser reconhecidos e valorizados (CNBB, Doc. 105, n. 160).
A reflexão sobre a ministerialidade na Igreja não é tarefa fácil, dada a imensa diversidade de interpretação das fontes bíblicas e patrísticas e as graves e profundas divergências que cercam as confissões cristãs. Contudo, é possível que tenha chegado o momento de vermos crescer uma Igreja que seja toda ministerial e que viva a força do dom batismal “para formamos um só corpo” (cf. I Cor 12,13), pois “uma Igreja toda ministerial oferece espaços de comunhão, corresponsabilidade e atuação dos leigos e colabora com a descentralização” (CNBB, Doc. 105, n. 152).
Através da diversidade de funções, carismas, serviços e ofícios que cada um é chamado a desempenhar, a força ministerial poderá ser maior expressa na liturgia e na celebração dos sacramentos, pois os serviços e ministérios estão fundamentados nos sacramentos do Batismo e da Crisma (CNBB, Doc. 105, n. 152). O Espírito Santo distribui graças especiais aos fiéis, tornando-os aptos para servirem à renovação e ao maior desenvolvimento da comunidade eclesial (cf. I Cor 12, 7; LG, n.12).
Desde o Concílio Vaticano II, que colocou a Igreja diante do dever de renovar-se para atualizar a compreensão teológica e a vivência da fé, muitas coisas estão em movimento. Todavia, se observarmos de modo realístico e objetivo, esse movimento pós-conciliar parece apresentar uma crise: alguns são mais preocupados, outros parecem desiludidos. Alguns pensam que os compromissos com a Tradição, a seriedade, as exigências incondicionadas do Evangelho foram deixados para trás, outros, ao contrário, pretendem e buscam uma mudança mais radical para responder as exigências de seu tempo.
Nesse sentido, um verdadeiro trabalho desta hora histórica é favorecer reflexões que visem a essência da renovação cristã e eclesial. Faz-se necessário sermos mais ousados e criativos na tarefa de repensar os objetivos e modelos, os métodos e as fórmulas, as estruturas e os estilos (cf. EG, 33). Só é possível sermos fiéis ao passado com a criatividade e com a renovação do presente.
Estamos certo de que “a diversidade de dons suscitada pelo Espírito possibilita respostas criativas aos desafios de cada momento” (CNBB, Doc. 105, n. 151). Com isso, entendendo a força ministerial do dom batismal na vida dos leigos, queremos desenvolver uma problemática que gire em torno do sacramento da Penitência.
Nesse intuito, nos propomos a refletir a respeito da ação sacramental da Reconciliação ao ministério exercido pelos leigos, pois acreditamos ter chegado o momento propício de nos abrirmos às reflexões no ritmo de nosso tempo. Para tanto, faremos o caminho, a partir dos seguintes temas: o rito e as fórmulas da Penitência (1), a crise do sacramento da Penitência (2), a força da fé pessoal e da Palavra de Deus no perdão dos pecados (3), a confissão recebida por um leigo (4). Por fim, faremos algumas considerações sobre o tema proposto.
1. O rito e as fórmulas da penitência
O Concílio recomendou que sobre o sacramento da Penitência se faça uma nova reflexão e deu uma norma a seguir: “o rito e as fórmulas da Penitência sejam revistas de modo a exprimir mais claramente a natureza e o efeito do Sacramento” (cf. SC, 72).
Depois de séculos da teologia dos sacramentos ligada, principalmente, ao esquema aristotélico de matéria-forma ou centralizada nas preocupações canônicas de validade ou liceidade, era necessária uma renovação que projetasse uma compreensão do sacramento em chave histórico-salvífica (cf. SC 5-8.35.47).
A missão pós-conciliar era recuperar, em um novo ritual penitencial, uma homogeneidade entre significado teológico, a partir da compreensão bíblica de história da salvação desenvolvida pelo Concílio, e o significado ritual, referindo-se em particular à Constituição Lumen gentium (n.11) e aos decretos Presbyterorum ordinis (n.5) e Christus Dominus (n.30).
A partir disso, o pecado do cristão batizado, que se reconhece acolhido e amado como “filho no único Filho” da ternura do Pai, não pode jamais reduzir-se à inflação de uma lei abstrata ou à violação de um código, que será sempre pecado de um filho pródigo que reconhece a bondade e os dons do Pai, pecado de um filho que sai e afasta-se da família, da comunidade e dos irmãos (cf. VISENTIN, 2001, p.1482).
O princípio inspirador e teológico é aquele que relaciona a Penitência com o Mistério Pascal de Cristo, primeiro sinal sacramental da salvação do homem. A partir dessa relação, requer-se um relevo na Palavra de Deus, na dimensão eclesial e em um organismo sacramental. Com isso, havia-se a necessidade de um rito mais expressivo, compreensível, adaptado para uma melhor participação e capaz de relacionar as diversas dimensões necessárias nesta prática sacramental, tais como: trinitária e cristológica, eclesial, pessoal e celebrativa.
Nessa perspectiva, estamos de acordo que a “reforma litúrgica” desejada pelo Concílio Vaticano II teve êxito em quase todos os casos. Os melhores resultados foram obtidos com as adaptações do Ordo Missae e do Missal Romano. Efetivamente, tivemos uma notável melhora na participação da Eucaristia. Contudo, precisamos reconhecer que nem todos os ritos gozaram de um feliz resultado. O sacramento da Penitência, nos primeiros anos pós-concílio, apresentava sérios problemas, seja do ponto de vista ritual seja do teológico-pastoral. Deve-se admitir que as coisas não mudaram muito. Permanecemos ancorados no legalismo tridentino de proteção e defesa, ou seja, a reforma do rito da Penitência não foi coroada de grande sucesso, porque tudo continua como antes, ritos e fórmulas, natureza e efeitos (cf. MAZZA, 1991, pp.507-532).
Teologicamente encontramos no “novo” ritual, posições que podem ser a causa da nossa esperança, sobretudo, a dimensão econômico-trinitária, porém, algumas leituras críticas afirmam que este ritual possui certa “discrepância de ideias” que caracterizam “dois estilos, duas teologias, duas linguagens justapostas que não sempre são em plena coerência entre elas” (cf. VISENTIN, 1991, pp.533-554).
Mesmo limitado, o Ritual de Paulo VI marca uma etapa fundamental que contribuiu para uma abertura mais ampla da visão sobre o sacramento da Penitência. A reforma inaugurada representou um primeiro passo de transição que, depois de mais de quarenta anos, precisamos revisar em vista de um futuro capaz de decisivas e marcantes evoluções.
As reflexões dos nossos dias e o atual “magistério” pontifício fazem deflagrar uma questão teológica e pastoral a partir da misericórdia, sendo capazes de permitir que uma experiência sacramental com a misericórdia tenha novas possibilidades. São questões com essa que devem ser consideradas com audácia e prudência, pois é capaz de consequências significativas para a vida e a missão da Igreja.
2. A crise do sacramento da Penitência
O sacramento da Penitência, a partir de uma ponderação unânime, é marcado por uma profunda “crise”. Evidentemente, a queda vertiginosa da confissão, já se encontrava em declínio, na década de 1960, por causa da evolução sócio-cultural e de um excesso de moralismos e exaltação do sentimento de culpa, gerava nos fieis grande insatisfação.
Da história da penitência emerge que a atual crise da práxis penitencial não é única, nem mesmo é a mais grave: a primeira verifica-se no final do período antigo, quando a dificuldade de acesso ao sacramento determina uma fase de “deserto penitencial”; a segunda crise acontece quando o sistema de comutação começa a lucrar com a penitência, alcançando perdão pela dívida paga ou pela indulgência adquirida, isto comporta, de um lado, uma espécie de “mercado” e de diminuição do valor sacramental, de outro, abre a estrada para a centralidade da confissão. A partir de Duns Scotus, porém, enfraquece-se a força da confessio, enquanto assume forma a absolutio. Talvez a raiz mais profunda da terceira crise da penitência, que chega até nós, inicia aqui, da concepção de sacramento que dissolva os atos do penitente e enalteça aquele do ministro (COSTANZO, 2014, p.149).
Quando analisamos a presente situação, encontramos algumas formas de pensar que caracterizam aqueles que frequentam e aqueles que não frequentam o sacramento da Penitência. Aqueles que frequentam o sacramento da Penitência o caracterizam como “um ato que devo fazer para receber a comunhão eucarística, ou seja, uma preparação necessária e obrigatória à Eucaristia” (mentalidade jurídica-formal); “um ato importante de humildade no caminho devocional, ascético e místico” (mentalidade espiritualista e individualista); “uma solução para liberar-se dos escrúpulos do presente e do passado” (patologia psicológica – a culpa); “um momento importante de diálogo em vista de alguns problemas relacionais e existenciais da vida” (solução terapêutica); “um gesto sacramental dentro de um caminho cristão de conversão a Deus” (caminho espiritual-eclesial). Aqueles que não frequentam o sacramento da Penitência se justificam sempre dizendo: “Confesso-me somente a Deus” (mentalidade individualista); “tenho sempre dificuldade de dizer meus pecados a outro homem, que entre outras coisas pode pecar mais do que eu” (mentalidade psicologista e de julgamento); “a confissão foi inventada pela Igreja para dominar a consciência moral de cada fiel” (mentalidade ideológica); “não posso ‘brincar’ com Deus, amanhã retorno a pecar de novo” (mentalidade moralista); “confesso-me uma ou poucas vezes ao ano, porque quero cumprir o preceito pascal” (mentalidade jurídica e mágica)[1].
Muitas resistências e dificuldades nasceram das experiências negativas em torno desse tipo de prática sacramental, muitas delas com a figura do próprio “ministro ordenado”.
Algumas reflexões sobre a “crise de visibilidade” do Sacramento afirmam que ela se relaciona com a secularização ou a descristianização do mundo e, com a perda do sentido de pecado. Mas não podemos somente aceitar esses argumentos como a causa principal da crise. Lamentar-se de tal situação, recordar-se dos velhos tempos, propor catequeses e exortações para revigorar a frequência neste Sacramento significa não compreender o que aconteceu nos últimos anos e a atual situação cultural e eclesial.
A “hipertrofia” da confissão deve-se, do ponto de vista teológico, a uma atenção voltada mais ao pecado do que no perdão. Consideramos a confissão como uma “autoacusação”, concentrando em nós mesmos, no temor do juízo, e não no dom da misericórdia de Deus. Expressamos a nossa “autoacusação” diante de um ministro, que mais se parece um juiz instrutor do que um servo da Palavra de Deus. O lugar (o confessionário), a duração (alguns minutos), o estilo (sussurro silencioso) fazem da confissão, diferentemente do que ela deve ser, uma celebração sacramental. Assim celebrada, a confissão perdeu de vista seu caráter cristológico e eclesial. Dessa maneira, as motivações da crise são diversas e as questões elencadas são complexas, pois mesmo sendo negativas refletem a verdade em relação ao sacramento. São questionamentos que marcam bem o atual momento em que vivemos.
3. A força da fé pessoal e da Palavra de Deus no perdão dos pecados
Quando a Escritura fala de renovação refere-se sempre da renovação do coração, da conversão do ser humano, da Penitência. O interesse não é somente pelo arrependimento e pela satisfação das singulares transgressões, mas por uma nova atitude do ser humano na relação com Deus e com a vontade Dele para abraçar toda a sua existência. Assim, o que importa é voltar-nos para Deus e ser responsável por todas as nossas decisões, colocando nossa própria existência humana em sua graça. Esta é a fé que torna o homem justo diante de Deus (Rm 1,17; 3,22; Gal 2,16) e de onde vem purificado o coração do homem (At 15, 9).
A questão da Penitência é, em primeiro lugar, uma questão de fé pessoal que assume seriamente o primeiro mandamento: “Eu Sou o Senhor teu Deus, se vocês ouvirem a minha voz e guardarem a minha aliança, serão minha propriedade exclusiva dentre todos os povos. De fato, é minha toda a terra, mas vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,3-6).
Desse modo, todas as tentativas de renovação e aprofundamento devem observar a questão da fé para a conversão interior e a graça que nasce da Palavra de Deus (Rm 10, 17). A Palavra que anuncia o Evangelho é palavra eficaz e faz acontecer aquilo que diz (cf. Hb 4,12-13), transforma o nosso modo de pensar e existir. Por ser Palavra encarnada do Pai, os atos e as palavras de Jesus tem força salvífica, torna-se Palavra redentora, possui força sacramental.
Enquanto proclamação eficaz da economia divina, a Palavra de Deus é comunicação de salvação. A Palavra, atuada e atualizada, é, também, revelação da ação potente do Espírito Santo. A presença de Cristo é vista como presença pessoal e dinâmica no seu mais profundo mistério. Tudo o que a Igreja é, nasce da relação com esta Palavra. Na verdade, a Palavra de Deus é tão forte, tão doce e inebriante, que sempre mexe com a ordem, os programas, as boas intenções e perspectivas de toda a Igreja. A Palavra da Escritura torna-se vida somente fazendo-se corpo nas palavras do Sacramento.
Desse modo, a pregação da Palavra não só fala de perdão dos pecados, de reconciliação e de paz com Deus, mas também opera o perdão, a reconciliação e a paz. Por isso, o centro e a alma da Penitência cristã consistem no escutar e no observar com fé esta Palavra que anuncia a graça e a misericórdia de Deus nos fazendo compreender que todos temos os elementos essenciais e necessários para a celebração do sacramento da Penitência.
Concebendo a fé desse modo, ela não é somente uma disposição, mas é a animação para a Penitência cristã. Por isso, até a alta Idade Média, o acento principal da doutrina sobre a Penitência não estava na absolvição do sacerdote, mas nos atos do penitente[2]. A atenção do Sacramento, neste período, voltava-se sobre a acusação dos pecados, sendo considerada como obra penitencial por excelência: a vergonha e a humilhação, ligadas ao próprio ato de confessar os pecados[3].
No final do século XII aparece a fórmula latina usada até hoje na Igreja, “Ego te absolvo”, ligada à fórmula do Batismo “Ego te baptizo”. Tal fórmula individualiza a eficácia do poder sacerdotal sobre o penitente, desenvolvendo sempre mais o aspecto privado da confissão e fazendo desaparecer a ideia de celebração eclesial e comunitária da reconciliação com Deus ou de experiência com a sua misericórdia. Além disso, o progressivo acentuar-se jurídico da Igreja começa a insistir sobre a índole judicial da absolvição.
Lembremos que o termo “Absolvição” começou a ser usado no século IX, em substituição ao termo “reconciliação”. Este termo jurídico revela a mentalidade legalista que começou a reinar em relação à reconciliação. Na antiga tradição, o rito de reconciliação dos pecadores com a comunidade era celebrado depois de um longo tempo de penitência. Na prática medieval, confirmada pelo Concílio de Trento, a absolvição era dada antes da penitência, tendo como resultado que a acusação se tornou mais importante que a conversão. Não é de estranhar, então, que o nome do sacramento se tornou confissão (BUYST, 2007, p.67).
4. A confissão recebida por um leigo
O interesse não é certamente novo. No início das primeiras comunidades podemos constatar: “Confessai, pois, uns aos outros, vossos pecados e orai uns pelos outros, para que sejais curados. [...] Meus irmãos, se alguém dentre vós se desviar da verdade e outro o reconduzir, saiba que aquele que reconduz o pecador desencaminhado salvará sua alma da morte e cobrirá uma multidão de pecados” (Tg 5, 16.19). A partir disso, a exegese moderna não poderá interpretar as palavras de Tiago como Penitência sacramental, pois em nenhum momento o trecho citado menciona a necessidade da presença de um presbítero. Na confissão mútua dos pecados e na oração de uns pelos outros existe uma tradição bem mais antiga para lidar com um batizado-pecador.
Segundo a regra da comunidade mateana (Mt 18,15-18), a Igreja oficial deve intervir, a partir dos que a presidem, somente quando o colóquio fraterno pessoal ou com outros membros da comunidade não atingir seus objetivos. Segundo a práxis penitencial da Igreja Antiga, a comunidade inteira intercedia pelo pecador com orações e penitência. Assim, a forma oficial da Penitência, com exclusão ou readmissão na comunidade da Igreja, representa então, a “ultima ratio” e não o instrumento ordinário, mas extraordinário, para conduzir o pecador a Deus e a comunidade (cf. KASPER, 2015, p.310).
Por outro lado, a “confissão aos leigos” acontecia nas comunidades monásticas e religiosas - “capítulo das culpas”, com ou sem absolvição geral dada pelo abade ou pelo responsável da comunidade ou como acompanhamento, feita aos pais e mães espirituais, sob a forma de confissão terapêutica. Também, Beda, o venerável, reconhecia a confissão aos leigos. Para os autores de “De vera et falsa poenitentia”, esse tipo de confissão era considerada em virtude da “vis confessionis”[4]. Tomás de Aquino a considerada como “sacramentalis quodammodo”. Alberto Magno afirma que o leigo que recebe confissão é “minister vicarius”, cujo poder necessário é aquele atribuído em virtude da unidade da Igreja na fé e no amor. Contudo, a partir de Duns Scotus, que exalta a absolvição sacerdotal, essa prática é diminuída de qualquer valor fazendo desaparecer tal possibilidade até a sua extinção nos artigos de Trento. Porém, superando a rigidez em relação a Reforma, a confissão mencionada acima, será um passo de resgate na Igreja.
A confissão a um leigo seria significativa, sobretudo, em relação ao “sacerdócio doméstico”, que poderia ser exercido entre pais e filhos, entre cônjuges e entre amigos. Esse modo de recebimento da confissão por um leigo, deve levar em consideração àqueles que tenham uma profunda e rica experiência de espiritualidade cristã.
A exortação apostólica Ministeria quaedam, do papa Paulo VI, em 1972, declara que “os ministérios podem ser confiados aos leigos, de modo que não são reservados somente aos candidatos ao sacramento da Ordem”. Esta possibilidade vem esclarecida, pelo mesmo documento, a partir da citação de um passo da Constituição dogmática sobre a Igreja do Concílio Vaticano II, falando do sacerdócio comum e do ministerial-hierárquico. Esses dois tipos de sacerdócio, diferentes essencialmente, dependem um do outro ao seu próprio modo, pois participam do único sacerdócio de Cristo (cf. LG, 10). Assim, os ministérios dos cristãos leigos e leigas, fundados sobre a grandeza do dom batismal, podem ser “reconhecidos”, “confiados” e “instituídos” (cf. CNBB, Doc. 105, n.157).
A este propósito, parece-nos interessante aquilo que observa Bernard Sesboué sobre as confissões à agentes pastorais leigos, segundo ele, essas são “feitas a um ‘sacramento-pessoa’, testemunho do perdão eclesial, e então, divino, mesmo que eles não possam pronunciar a palavra eclesial do perdão” (SESBOUÉ, 1992, p.264).
Na prática tradicional, dentro da celebração sacramental do perdão, quem se confessa encontra a figura de relação paterna no sacerdote. Quando o agente é um leigo, a dimensão fraterna, materna, feminina, pode ser colocada como experiência de maior valor. É um irmão ou irmã que, em nome do grupo religioso, acolhe, escuta e reconcilia com toda a comunidade eclesial. É a Igreja inteira que, como povo sacerdotal, exercita a obra de reconciliação (cf. Ritual da penitência, n.8). Por hora, a não possibilidade da absolvição, do gesto do perdão sacramental, deixa uma desvantagem no ministério laical, pois pode deixar incompleto o processo de reaproximação com a comunidade e de ocultar o primado da misericórdia e do perdão de Deus expresso nesta ação simbólica-ritual.
Munidos ou não de um “mandato apostólico” assinado pelo bispo, alguns leigos podem exercer a função de, em nome da Igreja, acompanhar espiritualmente aqueles que procuram a comunidade. Pensemos, em particular, nos numerosos leigos que servem nos hospitais ou em tantas outras instituições públicas.
Acompanhamento espiritual significa, antes de tudo, escuta. Diante da doença e da morte, muitos são tocados na consciência daquilo que viveram e podem ser escutados nessa situação de memória, alegre ou penosa, fácil ou difícil, conduzidos a um processo de reconciliação consigo e com sua própria história, com os outros e com Deus.
Nestas ocasiões do quotidiano, que não podem ser previstas não tendo dia ou hora para acontecer, o ministro ordenado, por inúmeras outras coisas ou diversos outros motivos, não consegue estar presente. Nessa perspectiva, os leigos já realizam numerosas confissões, pois servem como testemunhas eclesiais do perdão dado por Cristo na Igreja. Em geral, são muito bem aceitos por aqueles que lhes confiam sua confissão, às vezes mais que um padre (cf. MOTTE, 1997, p.103).
A partir deste entendimento, no nosso tempo, marcado por uma “nuvem mística-esotérica”, o sacerdote quase que possui a imagem de um homem com poderes ocultos e os sacramentos possuem um poder quase que “mágico” de realizar o que significam. Os leigos e leigas enviados pela Igreja, não possuirão essa imagem deturpada do sacramento.
Considerações finais
Em toda a História da Salvação, teologicamente, o mais importante a ser assimilado é o perdão como iniciativa do próprio Deus. A experiência do pecado é fundada autenticamente no primado do amor de Deus oferecido na forma do perdão (cf. Rm 5,8). A celebração sacramental, então, não faz mais que tornar presente, na forma de rito simbólico eficaz, um processo que é iniciado, existencialmente, da parte de Deus. De fato, é Deus que perdoa e inicia gratuitamente um processo de perdão. Não é o arrependimento que deve ter o primeiro lugar ou a primeira palavra. Ele deve nascer somente quando o fiel inicia um caminho à luz da fé e da Palavra de Deus.
Na experiência pastoral acontece que muitas confissões não chegam até o ato de absolvição, pois seria proibida ou rejeitada pelo ministro ordenado. Assim, muitas vezes, parece que só dizer o “pecado” basta. Muitos se sentem perdoados não por terem recebido o sinal do perdão (ato do ministro), mas por terem partilhado seus erros e situações conflituosas à luz da fé e da Palavra de Deus. Neste sentido, é a força dos atos do penitente que o leva à conversão.
Das reflexões sobre a crise do sacramento da Penitência, o primeiro caminho no qual acreditamos para uma possível solução poderá ser o de abandonar o conceito de “confissão” como lugar onde faço distinção entre normas jurídicas e morais, pecados veniais e mortais, entre efeito interior da consciência e efeito exterior do direito. É necessário distanciar-se dessa ideia para uma abordagem essencial, teológica e eclesial-comunitária da dimensão sacramental. Entrando na lógica da ação simbólica-ritual (celebração), sairemos da “quase-mágica” da absolvição (administração). Uma segunda via será aquela de incentivar a participação da comunidade no processo de conversão de um “batizado pecador” que busca a reconciliação, como nas comunidades primitivas. Por fim, um terceiro percurso, audaz e ousado, contando também com a diminuição do ministério ordenado e com maior engajamento e comprometimento de leigos e leigas, será permitir que alguns deles, em nome da Igreja, da fé em Jesus Cristo e na força regeneradora da sua Palavra, pela força do dom batismal possam exercer o ministério do sacramento da Penitência.
Com isso, pode-se crer que confiar este ministério aos leigos, de madura espiritualidade cristã e séria formação, significa adotar um outro lugar de exercício da Penitência, que terá a possibilidade de ser duplo e de consentir àqueles que o realizam, seja aquele que confessa ou aquele que escuta, de “fazer penitência” juntos, ao mesmo tempo, mesmo que de modo diverso.
Deste ponto de vista, justamente porque quem escuta a confissão não é um ministro ordenado, o seu estado laical agirá como condição de reciprocidade. No colóquio recíproco e confidencial, ambos fazem penitência: aquele que abre o coração ferido e aquele que empresta os ouvidos a este coração; aquele que examina onde errou e aquele que tenta dar uma resposta ao desejo de conversão; aquele que pede conselho para remediar e aquele que sugere para oferecer um remédio. Entre os dois se instaura, se reforça, a relação fraterna e materna, evangélica, de onde nasce a confiança que torna possível a abertura do coração, como aquela que precisa existir na essência do sacramento (cf. COSTANZO, 2014, 176).
Portanto, a confissão aos leigos pode se configurar como um dos diversos modos de participar da obra de misericórdia, de reconciliação e de edificação eclesial, um modo que deveria estar “ao lado”, nem acima e nem abaixo, muito menos, no lugar do Sacramento, entendendo que este modo não é também somente uma via pedagógica-propedêutica. De fato, não identificando simplesmente o Sacramento com a absolvição do sacerdote, enfatizamos os atos do penitente, recuperando a ideia de que através do ato do ministro, que age in persona Christi, é o inteiro corpo de Cristo, ou seja, toda a Igreja, a absolver o penitente. O ser in persona Christi do ministro não o habilita a tomar o lugar de Deus no julgamento, por isso, somos chamados a recuperar a sabedoria da tradição. Por fim, ao ministro, ordenado ou leigo, é dada a função de anunciar ao penitente a libertação, de partilhar a alegria da boa-notícia, projetando um horizonte de esperança no caminho de conversão.
[1] Escreve Rahner: “Faz verdadeiramente pena ver como toda a liturgia do sacramento da penitência tenha sido reduzida na sua forma externa a um pouco de palavras sussurradas velozmente. Façamos ao menos bem aquilo que pouco nos restou. Ensinemos aos fiéis que o sacramento é alguma coisa maior que um ato jurídico de absolvição” (K. Rahner. Problemi della confessione, in Id., La penitenza della Chiesa. Saggi teologici e storici. Cinissello Balsamo: Paoline, 1992. Pp. 49-72). [2] Além da penitência pública solene, feita no início da quaresma, com as cinzas e os cilícios, e da penitência privada, diante do confessor, em época carolíngia é conhecida outra forma de penitência pública não-solene, que se identifica como peregrinação penitencial (cf. C. Vogel, Il peccatore e la penitenza nel Medioevo, 27. Progressivamente as duas formas de penitência pública passaram da exceção para o desuso, enquanto a penitência privada, normalizada, tende a ser única (Cf. G. Moioli, Il quarto sacramento, 221). Nesta evolução a mudança principal é aquela da estrutura do rito. É um acontecimento progressivo. No início, depois de dizer os pecados ao sacerdote deveria ser feita a penitência e somente depois de cumprida, recebia-se a absolvição. A partir do séc. IX, imediatamente depois de dizer os pecados recebe-se a absolvição. Em torno ao séc. X a concessão de concentrar tudo em um único encontro é difundida e praticamente consolidada. No começo tudo acontece de modo prático e a motivo de causas imediatas, como doenças terminais. No final do séc. XII era já uma mudança completa e universal. Os gestos que constituem o sacramento encontram uma nova formatação: confissão dos pecados, absolvição por parte do sacerdote e execução de obras penitenciais (Cf. J. Ramos-Regidor, Il sacramento della penitenza, 185). [3]Afirma Gonzalo Florez: “La primera Escolástica tiende en general a destacar en el sacramento de la penitencia la obra del penitente, vista tanto desde su realidad interior (en cuanto dolor y arrepentimiento) como desde la obra exterior (en cuanto satisfacción o pena impuesta por el pecado) [...] La idea de la Alta Escolástica sobre la causalidad de los sacramentos contribuye a destacar en el sacramento de la penitencia el perdón como efecto del sacramento y su especial conexión con la absolución” (Penitenza y unción de enfermos, 148-167). [4] Com maior ênfase, Pedro Lombardo (Sent. IV, 17) dirá: “A vergonha é uma grande pena”. De agora em diante, a confissão se identifica tão plenamente com a penitência que, na ausência do ministro, o pecador vai se confessar, para ter segurança de ser perdoado, ao amigo ou companheiro, ao vizinho e até mesmo, se não tiver ninguém ao seu alcance, ao seu cavalo, à sua espada ou a algo que tenha de mais precioso. O tratado pseudo-agostiniano De vera et fala poenitentia, escrito por volta de 1050, contribui para incentivar a prática da confissão diante de leigos e conceber o perdão como efeito direto da confissão (cf. G. Múgica. O desenvolvimento da penitência do século II ao XIII, In. J. Equiza (org). Para celebrar o perdão divino e a reconciliação eclesial. São Paulo: Loyola, 2003. Pp.105-140, n.145.
Referências
BUYST, I. As celebrações penitencias, in. Deixai-vos reconciliar. Estudos da CNBB, 96. Brasília: CNBB, 2008.
COSTANZO, A. Cambiare vita – epoche, parole e fonti del “fare penitenza”. Ciniselo Balsamo: San Paolo, 2014.
EQUIZA, J. (org). Para celebrar o perdão divino e a reconciliação eclesial. São Paulo: Loyola, 2003.
FLOREZ, G. Penitência e unção dos enfermos. São Paulo: Paulinas, 2007.
MAZZA, E. “La riforma del ‘Rito della Penitenza’. Elementi per una reinterpretazione”, Rivista Liturgica 78 (1991/5) 507-532.
REGIDOR, J. Teologia do sacramento da penitência. São Paulo: Paulus, 2006.
SESBOUÉ, B. Les animateurs pastoraus laics. Une perspective theologique, in Etudes 3 (377/1992) 253-265.
VISENTIN, P. “La reforma della Penitenza: ritualística o innovatrice?”, Rivista Liturgica 78 (1991/5) 533-554.
___________. “Penitenza”, in D. SARTORE, - A.M. TRIACCA, - C. CIBIEN, ed., Dizionario di Liturgia, 1482.
KASPER, W. “Confession outside the confessional”, in Concilium 24 (1/1967) 31-42).
___________. La liturgia della Chiesa. Brescia: Ed. Queriniana, 2015.


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