A Teologia Sacramental em Medellin
- Frei Luis Felipe C. Marques, ofmconv.
- 31 de mar. de 2017
- 6 min de leitura
Atualizado: 17 de set. de 2020
MARQUES, L.F.C.. A Teologia Sacramental em Medellin. Liturgia e Profecia - 50 anos de Medellin. 1ed. Brasilia: CNBB, 2017, p. 67-72.
A Segunda Conferência do Episcopado Latino-Americano, acontecido em Medellín (1968), teve lugar imediatamente após o Concílio Vaticano II e, recebendo toda atmosfera do pós-Concílio, foi muito caracterizada por sua força de renovação. A América Latina vivia momentos de grande fermentação política e de profundas transformações socioculturais. Fundamentalmente, o grande objetivo da Conferência de Medellín era de traduzir a teologia do Vaticano II para a nossa realidade.
Com isso, Medellín não se limitou a aplicar ou repetir o Concílio, mas quis desenvolver de modo ativo e criativo suas intuições e temáticas e, sobretudo, assimilá-las partindo da realidade teológico-eclesial do continente latino-americano e caribenho. Sua atualidade confirma sua força profética.[1]
Fundado sob a Constituição Conciliar Lumen Gentium e a encíclica Populorum Progressio de Paulo VI (1967), o documento faz uma releitura da constituição Sacrosanctum Concilium (1965)sobre a liturgia através do contexto social e eclesial deste continente. Depois de quase 50 anos de sua publicação, estamos em uma situação propícia para acentuar que este documento permanece válido, podendo ser enriquecido com as experiências e aquisições que alcançamos na pastoral e na reflexão teológica dos últimos anos.
A leitura teológico-litúrgica-sacramental de base do documento afirma querer comprometer-se com a realidade, o desenvolvimento e a promoção humana, precisamente porque toda a criação está envolvida pelo desígnio salvador que abrange a totalidade do homem.[2] A partir desta perspectiva de fundo é possível entender o quanto a liturgia nos dá muito mais do que pedimos; nela encontramos mais do que procuramos. Tocando a totalidade do homem, esta não é simplesmente um mero contentamento das suas necessidades religiosas e devotas.
O humano não é mais o destinatário passivo das nossas liturgias, mas a matéria mesma com que elas são feitas. Ignorar isso significa não saber mais de qual humanidade são formadas nossas assembleias litúrgicas. Esta é uma liturgia em saída, para uma “Igreja em saída”, da qual o Papa Francisco tem falado frequentemente. Falar de liturgia humana significa falar de uma liturgia como continuação do Evangelho.[3]
A sacramentalidade da liturgia, voltando-se para o homem, visando a glória de Deus, faz a fé comprometer-se com a realidade de cada povo, mantendo-se sadia no processo de evolução da humanidade. É a busca de experiência vital de união entre a fé, a liturgia e a vida cotidiana, em virtude da qual chegue o cristão ao testemunho de Cristo.[4] Vida e celebração formam uma unidade; ambas são expressões inseparáveis do único culto espiritual (Cf. Rm 12,1-3).
Em outras palavras, é a busca de unidade entre liturgia e vida, Palavra e Sacramentos, sacramentos e compromisso, evangelização e liturgia, ritualidade e humanidade, inteligência sensível e sensibilidade inteligente. Nisso se dá a verdadeira razão para reencontrar a relação intrínseca entre a ação litúrgica (forma, conteúdo e rito, que para a teologia constitui o “significante”) e o mistério (fé, teologia e espiritualidade, que constituem o “significado”), entre sinal visível e sinal invisível, entre o teológico e o antropológico.
A liturgia, ação de Cristo, justamente na busca destas relações intrínsecas, é essencial para a vida da Igreja, e não um simples adorno. A liturgia, presença viva do Mistério Pascal, lugar teológico sacramental por excelência, é o momento em que a Igreja é mais perfeitamente ela própria, realiza, indissoluvelmente unidas, a comunhão com Deus e entre os homens.[5] Nisto se dá, pela ação simbólica-ritual, compreensão dinâmica e atual do Mistério Pascal, a edificação da comunidade. Quando Deus passa em nossa história, tornando mais humana a vida de seu povo, então é preciso que isto seja proclamado e celebrado na liturgia, como páscoa de Cristo acontecendo na páscoa da gente.[6]
Os sacramentos, relacionados com o Mistério Pascal de Cristo, pertencem ao modo de ser da Igreja que daí nasce. Sendo parte central da liturgia, esses são símbolos que alimentam e fortalecem a fé nas realidades cristãs, humanas, sociais e culturais de cada parte da América Latina. Por isso, Medellín traz como umas das sugestões particulares o conselho de estabelecer, planificar e intensificar uma pastoral sacramental comunitária com formação e educação ritual séria, gradual e adequada,[7] sensibilizada pelos símbolos e manifestada pelo corpo (corpo-mente-coração).
Ainda é tímida a compreensão dos sacramentos (principalmente a eucaristia) como “ações simbólicas”: sinais sensíveis que remetem a uma realidade invisível que ultrapassa a simples indicação de um sinal e nos faz mergulhar no mistério de Deus revelado em Jesus Cristo.[8]
Nossa preocupação não deverá ser tanto pela validade da celebração sacramental, mas para que os sacramentos sejam mais eficazes e melhor participados, requer que busquemos uma flexibilidade e a personalização dos mesmos a partir das diversas situações e necessidades, com discernimento, deixando de lado a uniformidade como princípio.[9]
Por isso, gostaria de refletir sobre o que são, a meu aviso, as duas exigências para que os sacramentos possam ser vividos como fonte de vida humana e espiritual, alimentando e fortalecendo a fé. A primeira exigência, presente no documento, mas ainda não efetivada, é o conselho de estabelecer, planificar e intensificar uma pastoral sacramental comunitária. Precisamos encontrar sempre a força sacramental na assembleia reunida celebrando a memória ativa do Senhor (cf. SC, 7).
Os sacramentos edificam e alimentam a comunidade. Se faz necessário ressaltar, deixando de lado o clericalismo e o subjetivismo muitas vezes reinantes, a dimensão eclesial de todos os sacramentos. Uma experiência viva com o Mistério pascal poderá ser mais eficaz quando a fazemos dentro de uma experiência viva de comunidade. Que os sacramentos aconteçam na Igreja-comunidade, não simplesmente na igreja-templo ou dentro da instituição social e círculos familiares.
Isso nos leva a rever as estruturas comunitárias de comunhão e de participação e a acreditar num caminho no qual as pessoas, antes de terem acesso aos sacramentos, possam fazer uma autêntica experiência de vida cristã e ter acesso e participação na vida da comunidade. É o constante desejo de não distribuirmos os sacramentos, mas acompanharmos o caminho de iniciação à vida cristã.
Assim, é cada vez mais urgente uma educação ritual séria, gradual e adequada. Esta é a segunda exigência, presente no documento, que gostaria de refletir. Somos de comum acordo que, mesmo sabendo do desejo conciliar, a educação litúrgica do clero (SC 14-18) e dos fiéis (SC 19) deixou a desejar. A problemática vigente é justamente porque está faltando uma educação teológico-litúrgica-sacramental básica.
A formação litúrgica tem a ver estruturalmente com a espiritualidade, porque indica um novo início e uma nova realização do ser espiritual, colocando-o precisamente no coração da experiência litúrgica, no mistério do culto, no corpo que celebra ações rituais e que fala linguagens simbólicas.[10]
Uma educação ritual séria e adequada não é entendida como formação para a liturgia, ou ainda, como uma série de explicações abstratas, conteúdos bíblicos-catequéticos, morais, esclarecimentos sacramentais, mas se refere a um deixar-se ser conduzido pela formação que a liturgia mesmo realiza. Quando Romano Guardini fala de “formação litúrgica”, não quer dizer é necessário fazer muitos cursos para preparar a celebração, mas se refere a um deixar-se formar pela própria ação simbólica-ritual. A liturgia não é compreensão de uma ideia que se explica em um rito, mas é experiência do mistério através das ações e gestos realizados no rito.[11]
Portanto, a teologia sacramental de Medellín, traduzindo a teologia do Vaticano II para a nossa realidade, indicava, em breves linhas, uma liturgia dos sacramentos mais humana e mais próxima do povo e, por isso, mesmo não tão desenvolvido, o texto possui força profética. Nestes 50 anos de caminhada latino-americana muito caminhamos, mas ainda é preciso caminhar com os pés mais firmes, acreditando numa participação sacramental mais plena e consciente. Rever o documento de Medellín, numa Igreja em saída, convida nossas comunidades a uma pastoral sacramental mais viva e a buscarmos uma educação ritual mais adequada, para que nossos resultados sejam sempre de uma teologia da liturgia mais plena, consciente, espiritual, eclesial, humana e libertadora.
[1] Cf. ALVARO CADAVID, “El caminho pastoral de la Iglesia em America Latina e El Caribe. Las Conferencias Generales del Episcopado”, in Medellín 123 (2005), p. 343. [2] CELAM. Conclusões de Medellín. In. Documentos do CELAM. São Paulo: Paulus, 2004, p. 155.
[3] BOSELLI, G. Por uma liturgia mais humana e hospitaleira.
[4] CELAM. Op. Cit. n. 9.7.
5] Cf. CELAM. Op. Cit. n. 9.3. [6] Cf. ´Páscoa de Cristo na páscoa da gente, páscoa da gente na páscoa de Cristo’, In: CNBB, Animação da vida litúrgica no Brasil, 1989, Doc. 43, n. 300. [7] Cf. CELAM. Op. Cit. n. 9.12. [8] BUYST, I. Teologia e liturgia na perspectiva da América Latina; avanços e desafios. In: FAVRETTO, Clair & RAMPON, Ivanir Antonio (orgs.). EU SOU AQUELE QUE SOU; uma homenagem aos 25 anos do Instituto de Teologia e Pastoral. Berthier, Passo Fundo, 2008, pp. 38-76. [9] Cf. CELAM. Op. Cit. n. 9.7. [10] Cf. GRILLO, A. Riformare la liturgia; senso teologico e aspetti pratici per la formazione liturgica. In. L’Ulivo, Revista olivetana di spiritualità e di cultura monastica, pp. 26-53, 2008/1. [11] Cf. GUARDINI, R. Formazione liturgica. Saggi. Milano: Ed. O.R.,1988.
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